O Babalawo com o Tabuleiro de Ifá
AWON BABAL'AWO

AWON BABAL'AWO - OS PAIS DO SEGREDO

-"OYE TI O BA WU ENI
NI A TA IFA ENI PA"-

"Qualquer que seja a soma que agrade alguém,
é aquela pela qual recebemos para jogar Ifá"

Em que pese que cada uma das Divindades que eram cultuadas na África Sudanesa tivessem o seu próprio "corpus" sacerdotal, os elementos principais do sacerdócio eram os sacerdotes do Orisa Funfun Orunmila, cuja Divinação Sagrada de Ifá regia a vida espiritual dos Yoruba.
    Nos antigos tempos, todos os sacerdotes do Orisa Orunmila Ifa eram saudados pelo termo genérico de Ol'orunmila ["Aquele que tem Orunmila"].  Aqueles que o povo sabia mais ligados à Divinação Sagrada, saudavam-nos como Baba Onifa ["Pai que tem Ifá"].
    Mas, no exercício de suas funções específicas, os Sacerdotes do Orisa Orunmila eram denominados por Baba ni Awo, ou seja, o Pai (baba) + que Tem (ni) + o Segredo (awo), termo este que foi simplificado para Babal'awo ou Babalaô nos atuais compêndios eruditos. O Babal'awo era, pois, o ponto central em volta do qual gravitava a Ritualística e a Liturgia Yoruba.


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Isto porque as funções de um Babal'awo não se restringiam à Divinação Sagrada e nem ao culto organizado do Orisa Orunmila: ele tinha que ter conhecimentos especializados sobre os cultos de todas as outras Imole ["Divindades"] e, nessa faixa, atuava tanto no atendimento aos devotos de todos os Imole, quanto no aconselhamento e assessoramento aos sacerdotes dos mesmos Imole.
    E também porque, fosse qual fosse a devoção de um Yoruba, antes de tudo mais, seu primeiro dever era com si próprio, ou seja, o dever de bem consumar o seu Iwa ["Destino"], que havia sido livremente escolhido por sua Ori Orun ["Cabeça no Além"], ou seja, antes de se tornar um Ara Aiye ["Corpo da Vida"] com a sua correspondente Ori Inu ["Cabeça Interna"] nesta Ilu Aiye ["Terra da Vida"].  E, especificamente nisso, só um Babal'awo podia ajudá-lo, guiá-lo ou socorrê-lo.
    E era por ser um sacerdote do Orisa que é o Arauto dos Destinos dos Humanos que, ainda que um Babal'awo atuasse na área específica de outros sacerdotes; conhecesse ou receitasse aplicação de mais ou menos 400 Ewe ["Folhas Sagradas"] e/ou medicinais; controlasse a prescrição e a execução das Adimu ["Oferendas Defensivas"]; exercesse o controle do Oso ["Poder Mágico"], sendo portanto um Ifatoso [Ifá + (Ti / Tem) + (Oso / Poder) ou, portanto, "Aquele que tem o poder mágico de Ifá" para o manejo dos objetos rituais portadores do Ase ["Força Mágica Vital"]; receitassem e aplicassem as Oogun ["Práticas de Medicina Natural, Mágica e Psico-Somática"]; defendessem aos fiéis dos Aje ["Feitiços"]; praticassem os Ipese ["Magias Retaliatórias"] e fornecessem os Awure ["Amuletos de Boa Sorte"], a sua máxima especialização era a prática constante do A Da Ifa Fun ["criar Ifá para alguém"] pela Divinação Sagrada de Ifá, através dos instrumentos consagrados Opon ["Tabuleiro de Ifa"] e Opele ["Corrente de Ifá"], para revelar aos fiéis qual era o seu Kpoli ["Odu de Nascimento"] que revela o Destino Pessoal.
    Com tantas responsabilidades, um Babal'awo precisava ter um intenso treinamento específico que, em geral, começava aos 7 anos de idade e, na verdade, só terminava por sua morte, uma vez que, devendo ele próprio ensinar o Awo ["Segredo"] a outro futuro Babalawo antes de sua própria morte, ensinar tornava-se uma nova forma de continuar aprendendo com a experiência de seus ancestrais.
    Aproximando-se, assim, desde a tenra idade à um Ojugbonan ["Mestre de Ensino"], um menino Yoruba agregava-se à família do mesmo e passava a ser conhecido como um Omo Awo ["Filho do Segredo"] e tinha a obrigação de obedecer e servir ao seu Mestre como obedeceria e serviria a seu próprio pai.
    Mais tarde, em pleno aprendizado, quando já acompanhava o seu mestre em suas saídas públicas, este aprendiz recebia a denominação de Akopo ["Aquele que carrega a Bolsa"], numa clara alusão à sua nova obrigação de carregar a Apo ["Bolsa"] que continha os Abira ["Conjunto de Objetos Sagrados"] que seu Mestre usava ao praticar a Divinação Sagrada.
    Como Akopo, o menino em crescimento era submetido à uma disciplina curricular intensa onde se testava, antes de tudo, a sua capacidade de memorização. Além da observação visual e auditiva das práticas de seu Mestre, o aprendiz praticava a identificação e a memorização das 16 (dezesseis) figuras gráficas básicas, chamadas Ona Ifa ["Caminho-de-Ifá"], para depois então aprender e memorizar as totais 256 (duzentas e cinqüenta e seis) possíveis combinações capazes de serem feitas.
    Era quando ele já começava a praticar com a forma rudimentar do instrumento Opele ["Corrente de Ifá"] preparado para ele por seu Mestre. Assim, ele aprendia que ao combinar entre si as Ona Ifa [trilhas de Ifa] dos 16 Odu Baba ["Fundamentos de Tradição Básicos"], formavam-se 256 novas figuras combinadas, mas entre si derivadas e, portanto, denominadas Omo Odu ["Filhos de Odu"].  E se o 1º Odu aparecesse combinado com ele mesmo - e isso era válido e possível para todos os 16 Odu básicos - estas figuras duplicadas eram chamadas de Odu Meji ["Odu Dois"], ou ainda melhor, "Odu Duplo".
    Depois, ele aprendia a Ordem de Precedência Hierárquica entre esses 256 Omo Odu, ordem de precedência esta que viria a se constituir na base de sua decisão na prática do Igboigbo ["procurar o Oculto"], quando da escolha entre respostas alternativas à uma pergunta específica.
    Em seguida, ele aprendia a própria essência da Divinação Sagrada: a memorização dos Ese Itan Ifa ["Versos dos Contos de Ifá"], os quais faziam parte de um conjunto maior, os Itan Atowodowo ["Contos dos Tempos Ancestrais"] que se constituíam-se nas Escrituras Sagradas dos Yoruba, na realidade jamais escritas, mas lembradas oralmente de geração para geração por mais de um milênio.
    Por teoria, os Akopo que aspiravam vir a ser um Babal'awo precisavam memorizar pelo menos 4 (quatro) Ese ["Versos"] para cada um dos 256 Omo Odu, o que representava a memorização de 1024 Ese para que ele pudesse começar a praticar por conta própria.   Entretanto, na prática, era admitido que ele começasse à divinar quando já soubesse, pelo menos, 1 (hum) Ese para cada um dos 256 Omo Odu.
    Após isso, ele aprendia e praticava a correta composição e execução dos Adimu ["Sacrifício Propiciatório"] - na verdade, este termo significava "Abrigar-se" - prescritos nos Ese Itan Ifa, enquanto procurava aumentar o seu conhecimento sobre as Ewe Ifa ["Folhas Sagradas de Ifá"] e as Ewe Ifin ["Folhas de Limpeza"] e mais as 300 e poucas Ewe Orisa ["Folhas dos Orisa"] que estavam ligadas à Divinação Sagrada.
    Só então ele aprendia sobre as Oogun [medicinas mágicas], os Aje [feitiços], os Ipese [magias retaliatórias] e os Awure [amuletos de boa sorte] nos quais podia aplicar todo esse conhecimento adquirido tão exaustivamente.
    Se o antigo Akopo conseguia chegar até nesse ponto, ele recebia de seu Ojugnonan [Mestre de Ensino] o seu cobiçado prêmio: a sua Owo Awo ["Mão de Segredo"], a famosa "Mão de Ifá".


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    A "Mão de Ifá" era, pois, a coroação de anos de esforços e estudos, sendo sancionada em ritual próprio que promovia a junção do Natural com o Sobrenatural, do Método com a Intuição Psíquica, induzida pelo transe mediúnico leve, que abria canais da percepção extra-sensorial do Babalawo para a presença do Ase dos Orisa Orunmila Ifa e do Imole Esu, já que o Babal'awo jamais "caía" em transe mediúnico possessivo por outros Imole [a menos que para ele se abrisse o "Caminho de Bohio"], sendo essa, na verdade, além de todos os conhecimentos já referidos, a grande diferença oculta, o Ero ["Segredo"] exotérico, entre o verdadeiro Babal'awo (Senhor do Segredo) e o Babal’Orisa [Senhor do Orisa] ou "Pai-de-Santo".
    Esta "Mão de Ifá" era representada materialmente por um conjunto de 16 (dezesseis) caroços dos frutos do Dendêzeiro, limpos de suas cascas moles, suas cascas duras polidas pelo uso constante e consagrados em ritual próprio, conhecidos em específico por Ikin ["coquinhos de dendê"], juntamente com um tabuleiro de madeira, geralmente circular, com mais ou menos 35 cm de diâmetro, levemente polido o seu fundo, mas com uma borda entalhada mais alta, a qual delimitava um "espaço sagrado", tabuleiro este chamado de Opon Ifa, justamente o "Tabuleiro de Ifá". Como o termo Awo pode significar "segredo" ou "tabuleiro", os Babal'awo também eram conhecidos pelo título de "O Senhor do Tabuleiro".
    Recebia também o segundo instrumento consagrado, o Opele Ifa ou a "Corrente de Ifá", agora confeccionado com uma dupla corrente de ferro, cada lado mantendo juntas 4 meias-sementes da árvore Òpèlé Oga oko [Schrebera Arborea A. Chev. Oleaceae], derivando daí o nome pelo qual este instrumento era conhecido.
    Mas, antes de receber estes instrumentos consagrados, o antigo Omo Awo, tendo passado pela fase de Akopo, era submetido agora a um dos rituais mais antigos da Humanidade: ele era "mergulhado" na Eerupe [Lama], matéria prima primordial da Existência, matéria de onde viemos e para qual um dia voltaremos e onde, ritualmente, "morria" o antigo Omo Awo e "nascia" o novo Babal'awo.
    Só a partir daí, o novo Babal'awo podia praticar a Divinação Sagrada por si próprio mas, mesmo assim, à cada 16 dias, no Ojo Awo ["Dia do Segredo"], ele devia se reunir com seu Ojugnonan, para continuar seus estudos e, com isso, ser apoiado pelo mesmo em sua incipiente prática pública.
    Tentei transmitir aqui, aos leitores, parte das dificuldades da Iniciação de um verdadeiro Babal'awo do passado; não sei se consegui, mas tenho a certeza que nem mesmo aqueles que já passaram pelas Iniciações dos "Terreiros de Nação", poderiam minimizar este tipo de Iniciação, tal como era praticada naquela época. De mais a mais, sociológica e religiosamente falando, a Iniciação ao Sacerdócio do Orisa Orunmila era e ainda é a única Iniciação intelectual entre todos os outros cultos aos Orisa e Ebora.
    Ademais, como existiam 4 (quatro) graduações superiores na carreira de um Babal'awo, sendo que a última tinha 16 (dezesseis) supra-divisões, pode-se sentir que o tempo de estudos e práticas de um Babal'awo não terminava nunca e tornar-se respeitado e em ascensão na "carreira" escolhida, era tarefa para toda uma vida!
    E se falamos em "carreira" é em sentido figurado, porque ninguém pretendia tornar-se Babal'awo para ganhar dinheiro, embora vários Odu [Fundamento de Tradição] determinem que o Babal'awo não possa efetuar a Divinação sem a correspondente retribuição, pois era popularmente conhecido um Verso dos Contos de Ifá que diz:

-"Oye ti o ba wu eni ni ta Ifá eni pá"-
-"Qualquer que seja a soma que agrade alguém,
é aquela pela qual receberemos para jogar Ifá"-

Assim, alguém era encaminhado ou encaminhava-se para ser um Babal'awo em decorrência do cumprimento do seu próprio Iwa ["Destino"], revelado pela própria Divinação, embora também fosse bem conhecido um outro ditado popular, o qual consagrava o "status" social de um Babal'awo :

    -" Um ancião que aprendeu Ifá, não precisa comer nozes de Kolla deterioradas."-

Porque não era quanto ganhava um Babal'awo de Eru ou "Pagamento" que fazia a sua fama; a sua reputação era proporcional ao seu sucesso em aliviar as aflições de seus fiéis consulentes e não os seus bolsos: nos Versos dos Contos de Ifá pode-se ler que até o pequeno pagamento estipulado para seus serviços, muitas vezes, era determinado que parte dele deveria ser disribuído entre os necessitados ou financiar um repasto comunal.
    Daí a maior procura de seus serviços e, à medida que sua reputação se firmava, ele ascendia à classe dos Oluwo ["Senhores do Segredo"], tendo acesso à cargos públicos e assim jamais precisaria "comer nozes de Kolla deterioradas", isto é, não passaria dificuldades financeiras.  Mas, a única forma para isso era estudar, praticar muito e bem cumprir seus deveres rituais para com o Orisa Orunmila, não lhe bastando somente uma efêmera fama.
    Mas isso não era fácil se ele não estivesse realmente capacitado, porque embora fosse possível, mais teórica que praticamente, a um Babal'awo inescrupuloso obter destreza suficiente no manejo dos Ikin ["Coquinhos de Dendê"] para forçar o "aparecimento" de uma determinada Ona Ifa ["Trilha de Ifá"] que lhe interessasse, ele sempre esbarraria no fato de seus consulentes conhecerem meios de impedir tal prática, mesmo que, aparentemente, o Babal'awo estivesse seguindo o sistema regular de normas.
    E isto era uma das mais importantes conseqüências da ação divulgadora dos Akisa ["Aqueles que louvam a Divindade"], leigos graduados no culto e que recitavam para o povo as lendas e os louvores do sistema, nas quais apareciam com freqüência precedentes históricos que clarificavam, na mente dos consulentes, quais eram as regras a serem obedecidas pelos Babal'awo. Qualquer desvio mínimo destas regras por parte de um Babal'awo, era imediatamente repudiado pelo consulente e severamente punido pela Confraria de seus pares.
    Ademais, o Babalawo que intentasse qualquer desonestidade, mesmo que fosse para agradar ao consulente, ainda esbarraria no fato de que, além de não precisar dizer-lhe qual o objetivo que o levava à consulta, este podia até inverter ocultamente este seu objetivo, mesmo no caso de escolha entre respostas alternativas.
    Portanto, ser um Babal'awo não era uma tarefa fácil e nem graciosa, mas sim árdua e espinhosa em estudo, prática, tempo, memória e perspicácia ao usá-la, embora a sua "carreira" fosse passível de erguê-lo, social e politicamente, na sociedade Yoruba, até acima do poder dos Oni ["Reis"], pois até estes deviam consultar a Divinação Sagrada, senão para si mesmo, mas necessariamente para os próprios "Negócios do Estado", pois também o alto funcionalismo do Estado era escolhido ou sancionado pela Divinação Sagrada.


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    Assim sendo, todo Babal'awo se esforçava para alcançar, sucessivamente, as 3 (três) categorias imediatamente superiores de sua "carreira" e, se alcançadas estas três, estivesse habilitado também por seu nascimento em uma das 16 (dezesseis) famílias nobres fundadoras de Ile Ife ["Cidade Santa de Ifé"], ele habilitava-se a disputar ainda uma das 16 (dezesseis) supra-divisões hierárquicas e vitalícias dos Awoni Babal'awo ["Adivinhos dos Segredos do Rei"], por conseguinte, do "Estado".
    O primeiro degrau desta ascensão na carreira religiosa era a condição de Elegan ["Aquele que tem Elegan"] e aqui compreendendo-se "Elegan" como o conjunto composto pela já conhecida Apo ["Bolsa"], mais o seu conteúdo Abira ["Conjunto de objetos sagrados e folhas medicinais"], todos eles portadores de Ase Orisa [Força Mágica dos Orixás) e com os quais se praticava, além da Divinação Sagrada, uma terapia médica natural e psico-somática. Quase sempre, nesta fase, eram desvinculados de qualquer cidade, sendo muitas vezes itinerantes.
    Ao contrário dos mais graduados, o Babal'awo Elegan era obrigado a manter a sua cabeça sempre totalmente raspada e a descobrí-la, caso portasse alguma cobertura, quando em presença de outros Babal'awo de categorias superiores.
    O segundo degrau de ascensão na carreira, após alguns anos de prática, era a obtenção da condição de Ol'osu ["Aquele que Tem o Tufo de Cabelos"], numa clara alusão da permissão de deixar crescer um "tufo" de cabelos circular, na parte lateral posterior direita do crânio raspado, demonstrando assim que já eram plenamente habilitados e em pé de igualdade com os Adosu dos outros Orisa, os quais usavam o mesmo Osu ["Tufo de Cabelos"] (Na verdade, nestes, "Osu" não é só um "tufo de cabelos").
    Mas para ser um Ol'osu, o Babal'awo precisava pertencer à uma família estabelecida em uma vila ou cidade que tivesse erguido um Origi, [pequeno "monumento religioso"], um protegido montículo de terra batida de mais ou menos 35 cm de altura, quase sempre muitíssimo antigo, recoberto de "cacos" de cerâmica ou de louça quebrada, com uma pedra pontuda no topo, projetando-se para cima. Embora o conteúdo do Origi fosse, deva e deverá permanecer secreto, era notório ali a dedicação ao Imole Esu Agba, o "Esu Ancestral".
    Era quando atingia este estágio de Ol'osu que o Babal'awo tinha direito a possuir a sua segunda Owo Ifa, ["Mão de Ifá"}, ou seja, o seu 2º conjunto de Ikin ["conjunto de 16 coquinhos de dendê", que todo Babal'awo Ol'osu devia possuir.
    O terceiro degrau na ascensão religiosa de um Babal'awo era a condição de Ol’Odu ["Aquele que Tem o Odu"]. Embora o termo Yoruba Odu, em seu significado mais restrito, signifique algo "grande" ou "volumoso", no Culto do Orisa Orunmila, este termo tem três outros sentidos referenciais:


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Primeiro sentido referencial:
- nele, Odu pode significar a "Figura Gráfica" que é riscada no Iyerosun ["Pó Branco Consagrado"] do Opon ["Tabuleiro"];
Segundo sentido referencial:
- nele, Odu pode significar o conjunto de Ese ["Verso"] de um Itan Ifá ["Conto de Ifá"], ligados ritualmente às 256 figuras gráficas acima citadas. É quando o termo Odu merece realmente o designativo de "Fundamento de Tradição Oral";
Terceiro sentido referencial:
- nele, Odu designa especificamente um "objeto físico", um recipiente de madeira, de forma cilíndrica, pintado nas cores brancas, vermelha e preta e que simbolizavam respectivamente os princípios do Iwa ["Poder da Existência"], do Ase ["Poder da Realização"] e do Aba ["Poder da Essência"], cujos elementos físicos portadores da magia de cada um destes poderes acham-se no seu interior, e, ainda, respectivamente, representam os Imole Irinwo Orisa Funfun ["Orixás Geradores da Brancura"], as Igbamole Iyami Dudu ["Eborás ou Grandes Mães Gestantes da Negritude"] e os Orisa Omokurin e Ebora Omobirin Pupo ["Imole e Igbamole Descendentes da Vermelhidão"].

Assim, pois, este Odu, enquanto objeto material, era um símbolo de extraordinário poder e era típico da Cultura Yoruba, com a sua prática junção do Natural com o Sobrenatural, que os Babal'awo Ol’Odu pudessem usar estes Odu, enquanto objetos, como assento ritual em cerimônias públicas, mas consistindo, entretanto, grave delito e sacrilégio que estranhos sequer tentassem abrí-los.
    Normalmente, este objeto sagrado, o Odu, era guardado sobre a itage ["plataforma de terra batida"] mais alta que o chão do Sasara ["alcova"] do Akodi Okanran ["cômodo principal"] do Ile Ifa ["Casa de Ifá"], onde era terminantemente proibida a entrada de mulheres e, até, de homens não iniciados no culto. Desta forma, estes Odu enquanto objeto e até sua versão menor, o Apere, eram construidos de forma a não serem facilmente abertos, pois dizia a lenda, não sem uma certa ironia :

-"Jamais deveria ser aberto, a menos que o devoto estivesse
extraordinariamente angustiado e, por conseguinte, ansioso por deixar este mundo
"-

Portanto, ser um Babal'awo Ol’Odu era ser o detentor de um extraordinário Oso ["Poder Mágico"] e só a partir deste ponto um Babal'awo era realmente um Ifatoso ["Aquele que tem o Poder Mágico de Ifá"].
    Eram estas, pois, em resumo, as três primeiras graduações que um Babal'awo podia alcançar por seus próprios e exclusivos méritos.
    A seguir, ou paralelamente à terceira graduação especial, havia um outro posto que era mais um reconhecimento de mérito específico, de certa forma um título honorífico, mas que era necessário para se alcançar algumas funções públicas e, até indispensável à algumas outras: era o título honorífico de Oluwo ["Senhor do Segredo"].
    Por exemplo: um Babal'awo assistente dos Awoni Babal'awo tinha que ser um Ojugnonan ["Mestre]. Mas isto podia ser alcançado pelo reconhecimento dos méritos de pedagogo de um Babal'awo, o que o tornava, automaticamente, num Oluwo.
    E assim chegamos ao patamar maior do Sacerdócio do Orisa Orunmila e, portanto, do Credo Yoruba, o quarto degrau da ascensão da carreira religiosa de um Babal'awo: a categoria superior dos Awoni ["Adivinhos Reais"].
    É verdade que o acesso à esta categoria superior era restrito aos Omo Bíbi ["Bem Nascidos"] da Cidade Santa de Ilê Ifé. Entretanto, tal procedência e descendência ilustre não eliminava a necessidade de um Owo Awo iniciante percorrer todo o processo iniciatório Elegan - Ol'Osu - Ol'Odu para alcançar o título honorífico de Oluwo. O fato de um Omo Awo ser também um Omo Bíbi [Bem Nascido] não lhe abria todas as portas : apenas não lhe fechava a última.
    Assim, teoricamente, qualquer Babal'awo iniciante podia aspirar vir a ser algum dia, um Awoni Babal'awo desde que:
     1) - fosse um Babal'awo praticante;
     2) - tivesse "status" de Ol'Odu;
     3) - obtivesse a reputação de Oluwo;
     4) - fosse nascido numa das 16 famílias aristocratas de Ilê Ifé.
    Na realidade, todos os não nascidos em Ilê Ifé jamais chegariam ao posto de Awoni e seriam sempre considerados Elú ["Estrangeiro na Cidade Santa"] de Ifé pelos Awoni Babalawo.
    Mas, os que ascendiam à categoria de Awoni Babal'awo, obtinham uma função específica vitalícia, ligada a um título também específico, a saber, por ordem de importância : Araba, Agbonbon, Agesinyowa, Aseda, Akoda, Amosun, Afedigba, Adilofu, Obakim, Olorí Iharêfá, Lodagba, Jolofinpe, Megbon, Tedimole, Erinmi, Elesi.
    Mas, na verdade, tirando-se o título de Araba que tinha a primazia do Culto e o de Olorí Iharêfá que era chefe dos Babal'awo que se encarregavam de assuntos do Estado, tratava-se mais de uma titulação aristocrática do que uma graduação religiosa, sobretudo se nos lembrarmos de que a tradição política Yoruba diz que foram 16 Chefes de Clãs Familiares que se reuniram para a fundação da Cidade Santa de Ilê Ifé, assim como a tradição religiosa reza que também 16 eram os Imole que vieram ajudar a reger a criação do Aiyé, instalando-se no Odé Aiyé, a morada das Divindades quando estiveram na Terra.
    Como na Divinação Sagrada tudo é 16 + 1, aos 16 Awoni Babal'awo devemos acrescentar o Oni ["Rei"] que, na verdade, em Ilê Ifé, era um teocrata submetido à uma sociedade secreta religiosa - a Oshogboni - do mesmo modo que aos 16 Imole do Odé Aiyé [Lugar das Divindades na Terra] acresceu-se o Imole Esu["Senhor Eshu"].
    E, na verdade, havia mais uma restrição na carreira final de um Babal'awo : o título de Araba, sendo o mais importante, era exclusivo do clã familiar Ilê Oketaxé, o aristocrata Clã da Casa dos Oketaxé. Mas, à parte o título de Araba, os outros 15 títulos dos Awoni eram hierarquizados segundo a antigüidade no posto que era ocupado vitaliciamente.
    Como o Credo Yoruba asseverava que os Orisa são atraídos do Orun [Além] para o Aiyé [Terra] pelo som dos tambores sagrados, também o Orisa Orunmila tinha os seus tambores: chamavam-se Firigba, Jongbondan e Keregidi. Todos os anos eles soavam, atraindo Orisa Orunmila, em 4 Grandes Festivais:

    Êgbodó Oni:  o Festival dos Inhames Novos do Rei, realizado em Junho;
    Êgbodó Erio: o Festival dos Inhames Novos dos Oluwo, feito em Julho ;
    Êgbodó Ifé:   o Festival dos Inhame Novos na Cidade de Ifé, em Agosto;
    Êwurin:         o Festival realizado em Setembro.

Nestes Festivais, somente os Awoni podiam dançar portando o Ìrùkêrê [Chicote-Insígnia], feito de pêlos da barbicha de bode com o grosso cabo de 1" (uma polegada), símbolo de seu "status" no culto e, portanto, também de seu aristocrático nascimento.
    Como vimos no início deste relato, o Povo Yoruba saudava os sacerdotes do Orisa Orunmila por diversas denominações, conforme a atuação, fama e/ou categoria que identificava nos mesmos. Portanto, impõem-se uma pergunta :
    Como o povo identificava as diversas categorias de Babal'awo?
    Como se pareciam ou se diferenciavam eles?


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    Em primeiro lugar, os Babal'awo não se vestiam, necessariamente, só de branco; podiam usar também o azul médio por questões puramente práticas: vestes desta cor sujam menos. E os Awoni, sendo aristocratas, desde muitos séculos atrás, talvez antes dos europeus, obtinham dos comerciantes árabes a seda multicolor, por ser esta muito leve e, se usada em vestes amplas, muito frescas no verão.
    E no inverno, por motivos climáticos inversos, introduziu-se o tecido adamascado árabe e, depois, o veludo europeu. Mas, no início, estas vestes, mormente no verão africano, restringiam-se a um grande pano retangular, enrolado e preso à cintura, indo da mesma ao final das canelas.
    Foi o relacionamento inicial com os povos negros já islamizados como os Fulbas, Peules e Haussás que introduziu o costume de usar vestes do tipo "cáftan" árabe, às quais se sobrepunham, para dignificação, mantos leves e esvoaçantes. Também a aculturação Islâmica promoveu a substituição dos tradicionais chapéus de palha finamente trançada em formato cônico, por gorros de seção cilíndrica ou turbantes, mas o uso de turbantes era privativo dos Awoni Babalawo.
    Calçados, do tipo sandálias pesadas, só eram usadas em longas caminhadas por quase todos, mas a Islamização introduziu as "babuchas", tipo de chinelo de couro tratado, sem salto, no estilo oriental, para os Omo Bíbi.
Vemos assim que, só pelas vestes, não era possível identificar-se um Babal'awo, a não ser entre os mais aristocrátas e os demais mortais!
    Então, olhava-se para as suas cabeças. Os Elegan tinham-nas obrigatoriamente raspadas; os Ol'Osu e os Ol'Odu deixavam crescer nas cabeças raspadas um tufo circular de cabelos, na parte lateral direita do crânio, tufo este aparado curto no caso dos Ol'Osu, mas que poderia ser longo e trançado no caso dos Ol'Odu. Mas, somente os Awoni usavam neste Osu, o Ekódidé, ou seja, "a pena vermelha da cauda do papagaio cinzento africano".
    Em seguida, podia-se visualizar os braços e o tórax dos Babal'awo: todos eles, de qualquer categoria, usavam o Idê Ifá ["Bracelete de Ifá"] de contas castanhas e verdes claras, atado no pulso esquerdo. Mas somente de um Ol'Odu para cima, ou, se muito famoso, um Oluwo, ousava acrescentar a este bracelete uma Opala cor de rosa ou, se não tivesse recursos para isso, uma conta de cerâmica dessa mesma cor.
    E, no pescoço, os Babal'awo usavam cordões de pequeníssimas contas castanhas, torcidos juntos e com dez grandes contas verdes e brancas colocadas em espaços regulares. Os Awoni, se abastados, podiam ainda usar no pescoço um dispendioso colar de contas de coral vermelho. E, finalmente, cruzando o peito apoiado no ombro direito o Edigbá, um colar de longo cordão de contas escuras especiais, feitas com seção transversal de caroços de Dendê ou ponta de chifre de gado.
    Nas mãos, quando saiam para praticar a Divinação Sagrada, todos os Babal'awo podiam usar o Ìrùkêrê, mas feito com longos pelos do rabo de vaca e com cabo de pouca espessura. Podiam, também, portar a Irofá ["Vareta Divinatória"], com a qual se podia chamar a atenção do Orisa Orunmila para as aflições de seus consulentes, batendo-a de encontro ao Opon. E quando dois Awoni se encontravam nas ruas, cruzavam os seus Ìrùkêrê, com os respectivos cabos para baixo, saudando-se com a senha ritual de Ifá: -"Ogbêdù! Ogbomurin!"-
    Além disso, os Babal'awo, em ocasiões solenes, caminhavam em procissão apoiando-se nos seus Òpá Orêrê ["Cajados de Ferro"], com pequenas sinetas cônicas, que retiniam cada vez que o cajado apoiava-se no solo.
    Este cajado, quando não transportado, era cravado em pé, com muito cuidado, no solo do pátio da casa de seu dono e era a insígnia mais respeitada e temida dos Babal'awo, não só por seus fiéis mas também por eles próprios. Recebia sacrifícios rituais junto aos Origi ["montículo sagrado"] e acreditava-se ser ele a sentinela do sono dos Babal'awo e, quando fincado ao solo, não podia cair sem sérios motivos que o derrubassem, pois neste caso, acreditava-se que seu dono já havia cumprido o seu Iwa ["Destino"] e aproximar-se-ia o seu Ôl’ojó ["Dia Marcado"], seu tempo aprazado para voltar ao Orun ["Além"]. Assim, quando da morte de um Babal'awo, o seu Ôpá Orêrê era intencionalmente derrubado.
    E quando se verificava que um Babal'awo estava acompanhado de um Akopo, tornava-se evidente que se estava diante de um Babal'awo Ôjúbona, ["Mestre de Ensino"]. E esta função de Ogjubona era para um verdadeiro Babal'awo, uma das suas funções mais importantes, já que outra das mais severas sanções que pesava sobre ele era o fato de que se ele não formasse, pelo menos, um Elegan ["Aprendiz"], a sua Ebikeji Orun ["Segunda Pessoa no Além"], ou melhor, a sua "Matriz Astral", não poderia achar descanso entre os seus Baba Agba ["Antepassados"].
    Vê-se, assim, que o "status" de Babal'awo não era uma sinecura e, muito menos, isento de trabalhos e riscos. A sua tarefa era difícil e patrulhada por severa regras de conduta que deveriam servir de base técnica e moral para a ação, pelo menos pública, dos atuais "Babalaôs":

O Babalawo Awoni não podia:
- envolver-se com a mulher de outro, inclusive sua Apetebi ["Companheira Ritual"];
- praticar Ajé ["Feitiço"] contra outro Awoni;
- conspirar contra os seus pares;
- abandonar outro Awoni que estivesse em dificuldades, sem tomar providências para   que tudo ficasse em ordem com o necessitado;
- falar mal de outro, fora do âmbito de sua Confraria, mesmo o outro sendo culpado;
- divulgar o teor das discussões travadas em seus encontros formais na Confraria   Oshogboni ["Sociedade Secreta"], mesmo que se tratasse de punições contra   culpados ou desagravo de inocentes.

Estas regras aplicavam-se e aplicam-se a todos os Babal'awo. E, como sou "Babal'awo" em cuja Ori Inu, o Orisa Orunmila já "gritou", acrescento à essas regras acima, outras duas vindas também da milenar sabedoria Yoruba e que eram aplicáveis à qualquer categoria de Babal'awo:

Obé ti o mu ki gbé kuku ará ré
-"Por mais afiada que seja a faca,
ela não pode riscar seu próprio cabo
."-
-"Não se pode barganhar com as coisas de Ifá,
como se faz com as coisas na praça do mercado
."-

O que equivale a dizer-se que nenhum Babal'awo podia realizar a Divinação Sagrada em proveito próprio e/ou barganhar com o Destino dos fiéis dos Awon Orisa.
    Foi por respeitarem e, principalmente, fazerem respeitar estas poucas regras básicas que essa linhagem de homens religiosos, os Babal'awo, conseguiu estabelecer por mais de 1400 anos, em sua própria terra e entre seus próprios fiéis, uma reputação de dedicação e honestidade. E é um eminente etnógrafo e pesquisador ocidental, W. Bascon (1969) quem remarca este fato:

- "... e é significativo que nenhum dos divinadores de Ifé
conquistou a reputação de cobrar em excesso."-

Assim, foi em respeito à essa antiga, merecida e honrosa reputação, que eu escrevi, quase sempre, usando o tempo do verbo no passado, pois notícias recentes de viajantes e etnólogos radicados no território desses antigos Impérios (Nigéria, Benin, Daomey e Togo), demonstram que quase trezentos anos de "guerra, suor e lágrimas" desmantelou a estrutura sócio-religiosa-cultural daquele povo e muitos se esqueceram, não conheceram ou desobedeceram ao antigo provérbio Ulkumy-Nàgô:

-"Oye ti o ba wu eni ni ta Ifa eni pa"-
-"Qualquer que seja a soma que agrade alguém,
é aquela pela qual recebemos para jogar Ifá
"-
    

Mana, Axé e Benção
Baba Oberefun Si Okojumide

 

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